sábado, 7 de novembro de 2009

Dos obstáculos epistemológicos *


Durante seu desenvolvimento pelo pensamento grego, a filosofia da natureza enveredou por um caminho equivocado. Esse pressuposto errôneo é vago e fluído no Timeu de Platão. WHITEHEAD, Alfred North: 31
Durante longo tempo o ideal do conhecimento científico foi aquele que Laplace havia formulado com sua idéia de universo totalmente determinista e mecanicista. Segundo ele, uma inteligência excepcional dotada de uma capacidade sensorial, intelectual e computacional suficiente poderia determinar qualquer momento do passado e qualquer momento do futuro. É essa visão pueril e talvez louca do mundo que está prestes a desmoronar, mas ela ainda reina, e efetivamente excluiu todo o problema da reflexividade. MORIN, Edgar 2000: : 32
O homem que descobre uma nova verdade científica precisou, anteriormente, despedaçar em átomos tudo o que aprendera, e chega à nova verdade com as mãos sujas de sangue do massacre de mil superficialidades.
ORTEGA Y GASSET, cit. ROHMANN, C.: 298
Confesso a má-educação. Já na infância fui convencido ser portador de dupla personalidade: um de meus polos volta-se ao divino, por causa da natureza da alma; por outro lado, tenho que me precaver contra os apelos de meu corpo, este mundano. E pelo fato do mais antigo ancestral tê-la desconsiderado, eu suaria a testa para sobreviver.
O desígnio do trabalho vem do próprio latim, tripaliare., Significa tortura através de um instrumento chamado tripalium.“Na concepção cristã, o trabalho representava o pagamento do pecado, um ato de expiação que sugere necessidade, aflição e miséria.” (ROHMANN, C.: 122)
Para cumprir a obrigação, manter meu corpo, até mesmo diante dos meus semelhantes, cruéis e desumanos irmãos terráqueos, mister encher minha mochila com band-aids. Assim é que em vez de sonhar e brincar, consenti em decorar díspares fórmulas, alcunhadas disciplinas, para que pudesse usá-las quando crescesse, ou seja, para depois de uns dez anos. O presente deveria ser empenhado em prol da  futura responsabilidade pessoal e social.
Na longa viagem uma questão me vinha à mente: porque deveria adotar tantas medidas preventivas, especialmente em função dos lobos? De que serviam as leis? Por humanas, elas também não conteriam alguma alma, algum espírito, além das meras intenções utilitárias?
Abri o título, e nada encontrei; apenas mapas de como são feitas. Segui adiante. A porta da frente acolhia interessados, mas para tanto teria que esvaziar minha mochila. As quinquilharias que carreguei por anos a fio de nada teriam serventia. Matemática? Física? Química? Biologia? Isso tudo era peso-morto. Ademais, partes das peças restantes teriam que ser cortadas, por inúteis.
Resignado, sentindo-me já quase um idiota, não me restava alternativa. Embarquei no novo trem, cuja viagem demandaria no mínimo mais cinco anos sacrificando boa parte de minhas noites de festas, os jogos lúdicos, meu violão e a poesia, meus parcos recursos, e a convivência com meus pares, na promessa de que o destino me traria tudo de volta, e multiplicado. Bem já sabia que isso não era verdade - o tempo per se nos dissipa - mas a pressão social nos obriga seguir.

No longo percurso encheram minha mochila com o que era considerado de valor, mormente especiarias de tal Império Romano. Aprendi belos truques, mas entre os meandros e filigranas, ecoava o mantra da minha primária questão. No último dia deram-me a certidão - apto ao trabalho - e deram-se cumpridos à missão. Ora, para isso, para ganhar a vida com meu suor já estava pronto, e até praticando, há muito. E, francamente, já constatado no meio, pouco me adiantaria "vencer" na vida.

O que se cumpria pois, era muito além de meu vaticínio: não obstante ter empregado a infância, boa parte de minha juventude, e não pouco dinheiro, recrudescia minha interrogação, agravada de outra: o que significa Justiça?
Nova portaria insinuava que os preceitos poderiam ser aproveitados, desde que me dispusesse a colar as peças em forma de puzzle. Isso naturalmente demandaria uma nova viagem, desta feita mais curta. Supus que nos tres anos pudesse divisar as duas faces da moeda que eu procurava. Desta feita o Estado me pagaria o ticket pelo meu sacrifício de mudar de cidade, de amigos, deixar mulher e filhos vendo novelas e navios, enquanto eu tentava na noite vislumbrar algum clarão. Empenhado o novo tempo, o locutor anunciou:

Esvaziem completamente suas mochilas. Estão repletas de obsolências, enganos, ideologias, ficções, artificialismos, parcialidades, dogmatismos e presunções. Nada disso corresponde à ciência. As exatas ministradas na juventude não são fidedignas, e as humanas beiram à desumanidade. Nenhuma lei tem espírito, exceto a vontade do legislador escolhido pela sociedade. Portanto, os ordenamentos são tão variáveis quanto as circunstâncias nas quais visam se impor, de maneira que a bagagem não tem a menor serventia.
E logo me veio outra razão:

O esforço natural de cada indivíduo para melhorar suas própria condição constitui, quando lhe é permitido exercer-se com liberdade e segurança, um princípio tão poderoso que, sozinho e sem ajuda, é não só capaz de levar a sociedade à riqueza e prosperidade, mas também de ultrapassar centenas de obstáculos inoportunos que a insensatez das leis humanas demasiadas vezes opõe à sua atividade.
SMITH, A.
cit. DOWNS: 56
Se desconfiara de minha péssima educação, um ministério para bobo partido em incontáveis fatias, apenas arbitrariedades, cacos de composições fantasmagóricas, completamente desconectadas da realidade, mas perfeitas ao sabor do feitor, agora lograva a mais completa certeza.
A visão materialista estabelece: mais dinheiro=vida melhor. Porém, tendo adquirido mais e tendo descoberto que o vazio permanece, a conclusão da premissa materialista está errada. ARNTZ, W.: 30
Vá lá - antes tarde, do que nunca. O quê de melhor, ao cabo, aprendi:

É uma questão que atualmente deve ser reconsiderada, tendo em vista que a fragmentação já se espalhou completamente, não apenas na sociedade, mas especialmente em cada indivído; e isso conduz a um tipo de confusão generalizada da mente, que por sua vez cria uma série infinita de problemas, interferindo com a nossa clareza de percepção de maneira tão grave a ponto de bloquear nossa capacidade de resolver a maioria deles.BOHM, David, Totalidade e ordem implicada: 17
“Um conhecimento mais profundo é sempre acompanhado de uma abundância de razões coordenadas.” (BACHELARD, G., A filosofia do não: 21)
Resta-me o conforto:

A inteligência prolongada da natureza e do ecossistema, a grante teia da vida, também trabalha através da coincidência e do sincronismo, como o faz a inteligência fundamental do universo. CHOPRA, DEEPAK, 2005: 90
O Universo se vê integrado, e por isso fronteiras são inoportunas, demodè. Não se contém um óleo derramado no oceano, tampouco o gás de Chernobyl. As asas da borboleta sub-equatorial podem fazer chover na Califórnia. O roubo num banco americano deflagra a crise mundial. Não há lei capaz de preservar o tempo; tampouco a  Amazônia.
A partir daí, passei encarar a hipocrisia ao largo. Dedico-me em périplo individual, sem destino pre-estipulado. Antes, todavia, convocado por ORTEGA Y GASSET, retornei àquelas ilusórias bases, no fito de detoná-las, para que não atraiam meus descendentes. Orgulho-me dos crimes cometidos contra os obstáculos epistemológicos: dezenas de exumações, em ataques ininpterruptos; porém, nem uma gota me caiu nos dedos. Ao mirar a obsoleta arquitetura das oxidadas plataformas jurídico-econômicas criadas e institucionalizadas pelos ocidentais, apelei apenas por bisturis demistificadores, a laser, (light amplification by stimulated emission of radiation), à primordial profilaxia, aragem preparatória ao plantio de um novo tronco, suficientemente oxigenado, um sustentáculo efetivo, motriz de um desenvolvimento "humano e sustentado".
Taxeando com a lente holística (abrangente da totalidade, somatório de disciplinas, apreciação globalizada), invadi pela aparelhagem do Estado. Deparei-me com mirabolantes criações, elucubrações provenientes do acúmulo de ilusões, artifícios da centelha acesa por PLATÃO, e oferecidos como dísticos científicos, por isso pretensamente lógicos. Ei-los pacientes do corte epistemológico (do grego episteme - saber ou ciência), e até do costume, porque para onde são estendidos esses trilhos só se chega à beira de penhascos.
A mudança para um humanismo congraçado com a natureza, por isto mais sensível, solidário, e complementar, mostra-se tarefa inadiável, porém se faz prazerosa, envolvente, natural, facilitada ainda, pela conscientização disseminada.
O imperativo da melhor convivência do habitante com seu meio ambiente não pode olvidar, por óbvia extensão, o semelhante. Isto condiciona, pois, o aprimoramento das relações pessoais; por conseguinte, sociais. Em outras palavras: pelo respeito e consideração ao indivíduo (só por ele), chegamos ao resultado social e, por consequência, ecológico. Onde isto se ensaia, quando prolifera esta idéia que a todos convém, a economia é considerada apenas expressão numérica, não hegemônica; e a lei, explicação. O desiderato se impõe independentemente de números ou códigos comportamentais (posto que infinitamente mais amplo), mas se faz também legal e legítimo, cientificamente correto e apreciado, em reversão por convergência, sem dialética, mas por somalética, dialógica pela qual a ética não se fratura.
“De fato, a vida no espaço cibernético parece estar se moldando exatamente como Thomas Jefferson gostaria: fundada no primado da liberdade individual e no compromisso com o pluralismo, a diversidade e a comunidade.” (NAISBITT: 96)
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* É aí que mostraremos causas de estagnação e até de regressão, identificaremos causas da inércia às quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos (...) o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização.
BACHELARD, G., 1996: 17
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Aprecie:
A razão do conhecimento




Um comentário:

  1. Parabenizo-lhe pelo blog tão polidamente escrito, muito ilustrativo e com um texto ricamente construído, cuja leitura torna prazeroso poder alimentar-nos com dados que merecem serem conhecidos.
    Mario Alberto Zeballos Arana
    São Leopoldo RS

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