terça-feira, 31 de agosto de 2010

A utopia da justiça social

Sentados lado a lado, os índios parecem se apresentar em iguais condições. Não é verdade, contudo. As predisposições, (e expectativas) são dissonantes. Veja que uns adornam a cabeça, outros não. Nenhum adereço é igual ao outro. Uns tem joelhos no vermelho, outros no azul. Nos braços as cores também variam, como de resto nos pés. Embora olhem para a mesma direção, a postura de cada um é divergente. E não há dinheiro em jogo.
 A comunidade fala-lhe com uma mesma voz, mas cada indivíduo fala partindo de um ponto de vista diferente; no entanto, estes pontos de vista estão em relação com a actividade social cooperativa e o indivíduo, ao assumir sua posição, encontra-se implicado, devido ao próprio carácter da sua resposta, nas respostas dos outros. HERBERT, A filosofia do ato: 153; cit. ABBAGNANO: 29  

Não há igualdade entre os homens, tampouco no reino animal, vegetal, ou até no mineral. Se a procurarmos na teia cósmica, sequer nos anéis de Saturno. "Um universo físico requer diversidade. A matéria não pode se formar sem diferenças." (Shelton: 170.) Mais óbvio, impossível. A matéria não é estática, nem intrínsecamente, mas evolutiva, par excellence. É mutante. A flecha do tempo se distancia de si mesma. Nós mesmos não somos iguais a ontem. Tudo flui, dizia Heráclito. O universo é tecido com a mais estranha diversidade, e a riqueza da Terra aí reside; no entanto, ardemos de paixão pela justiça, pela igualdade.
A nova ordem mundial de justiça social e da camaradagem, o estado racional e sem classes, não é um desvairado sonho idealista, mas uma extrapolação lógica a partir de todo o curso da evolução, que não tem menos autoridade do que aquela que o precedeu é portanto de todas as crenças a mais racional. NEEDHAM, J. cit. HAYEK, F.A.: 83
Camaradagem se assenta na conveniência, que pode ser tolerante, enquanto a obssessão por justiça requer precisão; portanto, sempre improvável.
A Teoria da Evolução dá-se produto dialético, síntese do confronto de forças. A ordem em prêt-à-porter sugerida mantém o vício redibitório pelo artifício da metafísica. Tal como ao vitoriano  Stuart Mill, (cit. BOBBIO, N., Democracia e Liberalismo: 71), por exemplo, 
Nenhuma comunidade jamais conseguiu progredir senão aquelas em que se desenvolveu um conflito entre o poder mais forte e alguns poderes rivais; entre as autoridades espirituais e as temporais; entre as classes militares ou territoriais e as trabalhadoras; entre o rei e o povo; entre ortodoxos e os reformadores religiosos
Racional deriva de ratio. Significa ratear, dividir. Aí mora o perigo. Ao discriminar beneficiados, penalizados, as classes, enfim,  o governo fere o princípio mais elementar da justiça social que diz perseguir. Doravante já não são todos iguais perante a lei, mas de acordo a classe arbitrada. Pior ainda a classe é postada como biombo às falcatruas. "Com a mesma falta de escrúpulos, tendo o poder nas mãos, manipula igualmente as carências dos mais necessitados e dos ressentidos." (Ferreira Gullar) Eis o melhor ideal que a cabeça de Stálin poderia conceber.
De fato, é como as nações modernas estivessem repetindo cegamente o erro que foi fatal para as cidades gregas, dois mil e quinhentos anos atrás. Por mais incongruente que isso possa parecer, minha impressão é de que a peça que estamos encenando já foi montada na Grécia, na época do nascimento da filosofia socrática. É que, desde Platão, as coisas praticamente não mudaram. É como se a espécie humana não pudesse escapar da mediocridade de seu destino. SAUTET, M. 2006: 15
A faina por justiça social afasta de si mesmo a possibiidade almejada; "A viciosidade peculiar do racionalismo é que ele destrói o próprio conhecimento que possivelmente viria salvá-lo de si próprio." (FRANCO, P., cit. GIDDENS, A.: 39).
Dessarte o estado ideal apregoado não passa de "falsidade ideológica.", no fito de domínio social. Ele é o primeiro a apartar, a segregar, a dividir em classes. Quanto mais divisões, mais fragilizada a sociedade, e mais fortalecido quem lhe comanda. Esta é a técnica platônica, levada e ampliada por platônicos palimpsestos acoplados pela indiana de Maquiavel, Descartes, Hobbes, Rousseau, Bentham, e Marx.  
Tudo depende, portanto, de se fazer com que os súditos acreditem que o governo é bom e justo, e de os cidadãos sentirem-se felizes em obedecer às suas ordens - daí todo conjunto de medidas draconianas, aniquiladoras de toda liberdade de pensamento, sugeridas por Platão tanto na República quanto nas Leis, a fim de produzir e conservar nos súditos essa crença. KELSEN: 50
"Não existe tirania mais cruel do que a exercida à sombra da lei e com uma aparência de justiça, quando, por assim dizer, os infelizes são afogados com a própria prancha em que tinham sido salvos." (MONTESQUIEU: 109)
O planejamento em escala abrangente é uma impossibilidade epistêmica. 
GRAY, J., cit. GIDDENS, A.: 80
O que governa a dinâmica da natureza, inclusive em seu aspecto mais material, na física, não é uma ordem rígida, predeterminada. Nem tampouco uma dialética entre contrários em luta, que leve a síntese, até que se produza uma nova antítese, como na visão dialética marxista rechaçada também pela genética, segundo diz MONOD. É precisamente uma interação - que já existe nos níveis materiais mais elementares entre o aspecto onda e o aspecto corpúsculo - o que impulsiona a dinâmica da natureza. Assim o mostram as relações de mecânica ondulatória, que explicou LOUIS DE BROGLIE, síntese genial que tornou possível, como diz RUEFF, uma filosofia quântica do universo, aplicável não somente às ciências físicas, senão também a todas as ciências humanas. GOYTISOLO, J. V.,  Interações
O estudo de como surge a ordem, não em conseqüência de um decreto de cima para baixo da autoridade hierárquica, seja política ou religiosa, mas como resultado de auto-organização por parte de indivíduos descentralizados é um dos acontecimentos mais interessantes e importantes de nossa época. KELSEN, H., A democracia: 140. 
Do marxismo à democracia o fito da igualdade move a comunidade. . Aquele buscou atingi-la com fuzis. Não deveria tentado: se E=Mc², o materialismo não tem, sequer, objeto! Até o muro desapareceu. Não há o quê abordar. E quanto a sobrevivente, quase unanimidade, o mais reverenciado jurista do século XX tardou trinta anos, mas reconheceu a mais notável diferença: “É o valor de liberdade e não o de igualdade que determina, em primeiro lugar, a idéia de democracia.” (Kelsen: 141)
Se Kelsen e alguns outros tardaram tres décadas, os russos necessitaram setenta anos para sair do engôdo. Na implosão o que se viu foi uma casta encastelada, a Nomenklatura dissipando-se no buraco-negro do blefe. A Perestroika significava a (re) ascenção do paradigma iluminista: “É também extremo respeito pelo indivíduo e consideração pela dignidade pessoal (GORBACHEV: 36) A faina social era utópica, e como tal, estéril: “Aparentemente a desigualdade – não a igualdade – é uma condição natural da humanidade.” (DAHL: 77)
Na cadência marcial, todavia, ainda marcha a civilização, ao gáudio de PUTINS e afins:
Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil: ambas, com efeito, são formas da hemiplegia moral. A história está cheia de retrocessos nesta ordem, e talvez a estrutura da vida em nossa época impeça superlativamente que o homem possa viver como pessoa.
ORTEGA Y GASSET, A rebelião das massas: IV

A Rússia atual foi transformada por uma oligarquia oportunista, corrupta e sanguinária em um lugar aonde as políticas fascistas vêm sendo esticadas ao limite, com intensidade multiplicada se comparadas com as ofensivas anti-povo empreendidas em outras partes do mundo, em especial naqueles países que os papagaios da pirataria financeira costumam chamar de 'emergentes'. Ali mesmo, onde um dia bateu o coração da União Soviética revolucionária. Para nós, tomar conhecimento da realidade dos trabalhadores russos é sim uma questão de solidariedade, mas também de saber bem até onde podem chegar os esforços de aniquilação movidos pelos inimigos do povo. Ainda mais agora, que os demagogos do lado de cá do mundo, como Chávez e Lula, estão convidando gente como Dimitri Medvedev e toda a máfia russa para fazer negócios na América do Sul.  SOUZA, H.R.C., Um preocupante retrato da Rússia atual. www.anovademocracia.com.br
Qualquer eleição é uma espécie de jogo, como o de damas ou o gamão, com um ligeiro matiz moral, um jogo com o bem e o mal, com questões morais, e as apostas a acompanham naturalmente. O caráter dos eleitores não é comprometido. Até mesmo votar pelo direito não é fazer alguma coisa por ele. É apenas expressar timidamente aos homens o nosso desejo de que ele prevaleça. Há muito pouca virtude nas ações das massas de homens.
THOUREAU, H., cit. Downs: 76
É pior:
Um homem vota em um partido e permanece infeliz; ele conclui que era o outro partido que traria o período de felicidade e prosperidade. No momento em que estivesse desencantado com todos os partidos, já seria um homem idoso, à beira da morte. Seus filhos teriam a mesma crença de sua juventude, e a oscilação contínua.
RUSSELL, Bertrand, Ensaios céticos: 121.
Ao venerar a condição primaz, o cidadão deixa de ser. Ele ignora o papel do Estado, ainda que o tome por uma grande coisa. A gente crê em qualquer futuro pintado:
Em muitos Estados do Terceiro Mundo, o assim chamado povo soberano não é nada. Ou quase nada. Fica à margem ou ausente do jogo político, limitado a um círculo restrito. Chamam-no somente para ratificar, plebiscitar e aplaudir. [...] Sobretudo por ocasião das eleições presidenciais. (Schwartzenberg: 320)
A democracia fala de um governo comandado pelo povo e sujeito às suas leis; na realidade, entretanto, os regimes democráticos são dominados por elites que planejam maneiras de moldar e dobrar a lei a seu favor .(Pipes:251)

A massa se rege por sentimentos, emoções, preconceitos, como a psicologia social já demonstrou exaustivamente. A opinião das massas formando a opinião pública será por conseqüência irracional. Não se iluda o publicista democrático a esse respeito, cunhando a expressão agora uso corrente no vocabulário político da propaganda: o ‘estereótipo’, ou seja o ‘clichê’, a ‘frase feita’, a idéia pré-fabricada, que se apodera das massas e elas, numa economia de esforço mental, como diz Prelot, aceitam e incorporam ao seu ‘pensamento’, entrando assim a constituir a chamada ‘opinião pública’. BONAVIDES, P.:459.
"Quanto mais facilmente os eleitores acreditarem nas forças mágicas do Estado, tanto mais estarão dispostos a votar a favor do candidato que promete maravilhas. (Sorel: 145) "Mas quando o legislador é finalmente eleito – ah! Então o seu discurso muda radicalmente [...] o povo que durante a eleição era tão sábio, tão cheio de moral, tão perfeito, não tem mais nenhuma espécie de iniciativa." (Bastiat: 59)
Torna-se communis opinio que quem detém o poder e deve continuamente resguardar-se de inimigos externos e internos tem o direito de mentir, mais precisamente de ‘simular’, isto é, de não fazer aparecer aquilo que existe, e de ‘dissimular’, isto é, de fazer aparecer aquilo que não existe. Bobbio, N.: 372
No tempo de Russell ainda podia haver alguma alternância. Ora, contudo, não:
Sempre que penso nas alianças e disputas na política libanesas, me lembro do filme 'O Poderoso Chefão'. Inimigos se tornam aliados, antigos amigos passam a se matar e, após inúmeras baixas, todos se sentam à mesa para definir a nova divisão do poder. CHACRA, Gustavo, Diário do Oriente Médio http://blog.estadao.com.br/blog/chacra
O comerciante está convencido de que a lógica é a arte de provar à vontade o verdadeiro e o falso; foi ele que inventou a venalidade política, o comércio de consciências, a prostituição dos talentos, a corrupção da imprensa. Sabe encontrar argumentos e advogados para todas as mentiras, todas iniquidades. Somente ele nunca se iludiu sobre o valor dos partidos políticos: julga-os todos igualmente exploráveis, isto é, igualmente absurdos...
PROUDHON, P.-J., Filosofia da Miséria, Tomo I: 351.
"O intervencionismo – definido como uma forma mais branda de socialismo, ou como social-democracia – também leva a resultados trágicos no longo prazo." IORIO, Ubiratan, J. Keynes, entretanto, o grande "economista" da "social" democracia, apreciava lembrar que a longo prazo estaríamos todos mortos. Edgar Morin (Compreender não é preciso; in Martins e Silva: 30) descreve a ironia:
Assim, a economia, a ciência social matemáticamente mais avançada, é também a ciência social e humanamente mais fechada, pois se abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas, ecológicas, etc., inseparáveis das atividades econômicas. Por isso, os seus experts são cada vez mais incapazes de prever e de predizer o desenvolvimento econômico, mesmo a curto prazo.
Ocorre o bizarro, denunciado no meio do barbarismo soviético, mas antes do nazista começar a devastação:

A teoria em sentido tradicional, cartesiano, como a que se encontra em vigor em todas as ciências especializadas, organiza a experiência da vida dentro da sociedade atual. Os sistemas das disciplinas contêm os conhecimentos de tal forma que, sob circunstâncias dadas, são aplicáveis ao maior número possível de ocasiões. A gênese social dos problemas, as situações reais, nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma consideradas exteriores.
Encerramos com as surreais constatações de BASTIAT (p.:33)

A lei só será um instrumento promotor da igualdade se tirar de algumas pessoas para outras pessoas. E nesse momento ela se torna instrumento de espoliação.
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